7. O Espírito da verdade.

7. O Espírito da verdade. 

No francês: l’esprit de vérité; ou seja, o espírito portador da verdade. Kardec repeliu ser essa a qualificação dos espíritos superiores; que eles se proclamariam assim. Tal condição, no caso deles, abrigaria orgulho e induziria a erro se literalmente considerada. Nenhum espírito, mesmo superior, poder-se-ia arrogar a verdade, a santidade absolutas, só peculiares aos puros. A referida qualificação, para Kardec, pertenceria a um único ser; seria nome próprio expresso no evangelho; espírito que raramente se comunicaria com os homens.[1] Dizer-se o espírito da verdade somente não tipificaria empáfia disfarçada nesse caso especificado pelo mestre. Por quê? Está claro. Kardec acreditava que essa entidade fora mesmo Jesus quando esteve na Terra; razão pela qual o tratou por l’Esprit de vérité,[2] atribuindo a presidência da regeneração planetária, ora ao camponês judeu do Mediterrâneo, ora a l’Esprit de Vérité.[3] Perguntará, o leitor: — Maiúsculas ou minúsculas? — Direi que ambas se alternam nos originais franceses; da Revista Espírita, inclusive. A primeira menção preposicionada foi: l’Esprit de vérité;[4] já ao assumi-lo como guia, Kardec escreveu: mon guide spirituel: l’Esprit de Vérité;[5] sendo raras, mas também encontradas: l’esprit de Vérité, l’esprit de vérité.[6] Nesta altura, o leitor inquire: — Será espírito de verdade, ou da verdade? — No português, os substantivos devem ser determinados por artigos às vezes. Por exemplo: Um amigo de verdade é também um amigo da verdade. E se vê que são coisas distintas. O que se quer, pois, não é dizer que o espírito é de verdade, mas da verdade, em função de ser um portador dela. 

Sabe-se que a 25/3/1856, escreveu-se a Kardec: — Por toi, je m’appellerai La Vérité: Para ti, chamar-me-ei A Verdade. — E a 12/6/1856, uma missão foi-lhe confirmada pelo Esprit Vérité: Espírito Verdade;[7] locução, pois, não preposicionada, a originar-se de substantivo determinado e simples, cuja publicidade Kardec só fez exarar em jun-jul/1858.[8] Começou, então, um hiato de 17 meses. E a partir de dez/1859, todas as menções a esse espírito se tornaram preposicionadas, afora uma. De início, La Vérité, Esprit Vérité; depois, l’Esprit de vérité. Do alegórico ao profético. Mas nem por isso há conflito. Pelo menos não nas psicografias obtidas na localidade de Passy, a 20/12/1861, pela médium sra. Dozon. Ali, o recém-morto sr. Jobard declara que nada responderá sem l’Esprit de vérité, o qual, ato contínuo, informa-lhe haver sido de Kardec o pedido da evocação. Adiante, o sr. Jobard diz que o mais esclarecido dos espíritas fora inspirado por la vérité, quem assina o esclarecimento da mensagem seguinte, sobre o porquê da partida precoce do recém-morto, uma insólita reedição metafísica do mito de Ícaro: “Não vades mais longe”.[9] No latim de S. João, em 14,17: Spiritum veritatis; 16,13: Spiritus veritatis; 15,26: spiritum veritatis;[10] no grego: tò pneuma tês alêtheias.[11] Nas escrituras, sempre o caso genitivo; portanto, preposicionado no português. Sim, nessa medida, o Espírito é da verdade, e não a Verdade.[12] Como quer que seja, não resta prejudicado o fato espirítico de que se trata de um ser elevadíssimo; no dizer de Kardec, ser espiritual que preside a doutrina espírita e a regeneração planetária. Tudo indica que o discípulo de Pestalozzi acreditou que esse espírito fora, na Terra, Jesus;[13] segundo a tradição joanina, por sinal, justamente ele, o caminho da verdade.[14]

Uma única aparente contradita — entre parêntesis, além disso — estaria na segunda obra espírita por Kardec publicada e, por ele, jamais reeditada, em que se lê: “Tendo interrogado esse espírito, ele se deu a conhecer sob um nome alegórico. (Vim a saber posteriormente, através de outros espíritos, que é o de um ilustre filósofo antigo)”.[15] Especulam-se candidatos. Máxime, entre os desagradados da correspondência em geral aceita entre Verdade e Espírito da verdade. Suscitam, pois, resolução no nome de Sócrates. Porém, sua assinatura ladeia a do próprio Espírito da verdade no encerramento dos emblemáticos prolégomènes d’O Livro dos Espíritos, subscrições publicadas na segunda edição da obra, assim: “Saint Jean l’Évangélist, Saint Augustin, Saint Vicent de Paul, Saint Louis, l’Esprit de Vérité, Socrate, Platon, Fénelon, Franklin, Swedenborg, etc., etc.”[16] A mim, de perfeito arremate, servem-me os justos epítetos, ao iletrado camponês do Mediterrâneo, atribuídos pelo prof. Burton L. Mack. Estudioso do evangelho perdido, mas reconstituído, chamado Q, Mack esclarece que Jesus não era visto pelos discípulos como cristo, i. e., filho de Deus, sim como mestre e líder contracultural, verdadeiro Sócrates judeu, diz o historiador de Claremont, Estados Unidos.[17] Nada a dever, portanto, a qualquer ilustre filósofo antigo e, assim, só mesmo a condição a que o próprio Kardec o alçou: l'Esprit pur par excellence,[18] un Messie divin,[19] poderia tornar-se obstáculo à compatibilidade entre Esprit Vérité e Esprit de vérité; entre filósofo-profeta e Messias; ou seja, no fim de contas, entre espírito superior e puro espírito. A historiografia contemporânea nos levaria a convergir para a primeira hipótese. Escreve Reza Aslan: “O problema para a Igreja primitiva é que Jesus não se adaptava a qualquer dos paradigmas messiânicos oferecidos pela Bíblia Hebraica, nem cumpria uma única exigência que fosse esperada do messias”.[20]


[1] Revista Espírita. Jul/1866: Qualificação de santo aplicada a certos espíritos. 

[2] O Livro dos Médiuns, 48. 

[3] O Evangelho segundo o Espiritismo, I: 7; A Gênese, I: 42. 

[4] Revista Espírita. Dez/1859: Boletim da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. (25/11/1859. Sessão geral.) 

[5] Revista Espírita. Nov/1861: Banquete oferecido pelos espíritas bordeleses ao sr. Allan Kardec. Discurso e brinde do Sr. Allan Kardec. 

[6] Revista Espírita. Jun/1862: Conversas familiares de além-túmulo. Sr. Sanson. Terceira conversa, n. 13: “l’esprit de Vérité”. Fev/1867: Dissertações espíritas. A Clareza: “l’esprit de vérité”. 

[7] Obras Póstumas. 

[8] Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas [jun/1858]. Cap. II. Das manifestações espíritas. Manifestações espontâneas: “Tendo interrogado esse espírito, ele se deu a conhecer sob um nome alegórico. (Vim a saber posteriormente, através de outros espíritos, que é o de um ilustre filósofo antigo)”. [Revista Espírita. Jul/1858: Conversas familiares de além-túmulo. O tambor de Beresina.] Atente-se à nota de Kardec sobre o nome de seu guia, antes omitido no Instruções Práticas: “O espírito familiar da casa deu-se a conhecer sob o nome alegórico de a Verdade”. (No fr.: le nom allégorique de la Vérité.) 

[9] Revista Espírita. Mar/1862: Conversa de Além-Túmulo. Sr. Jobard. Entrevista: Passy, 20/12/1861. Médium: sra. Dozon. 

[10] Biblia Sacra, Vulgatæ Editionis, Parisiis, 1838, p. 826/28. 

[11] PASTORINO, C. T. Sabedoria do Evangelho. 8.º Vol., p. 15. 

[12] Silvino Canuto Abreu, contrariando Kardec, insistia na forma não preposicionada. (O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec. Revista dos Tribunais Ltda. & Companhia Editora Ismael, abr/1957.) 

[13] O Livro dos Médiuns, 48; O Evangelho segundo o Espiritismo, I: 7; A Gênese, I: 42. 

[14] PASTORINO, C. T. Sabedoria do Evangelho, vol. 1º, introdução, pp. XII/XIII: “(...) existem frequentes hendíades (...) duas palavras unidas pela conjunção ‘e’, em vez de o serem pela preposição: ‘ressurreição e vida’ por ‘ressurreição da vida’; ‘o caminho e a verdade e a vida’, por ‘o caminho da verdade e da vida’, etc.” (Também vol. 8º, pp. 6/11.) 

[15] Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas [jun/1858]. Cap. II: Das manifestações espíritas. Manifestações espontâneas. Obs.: Anote-se, ainda, a impressão de Kardec sobre a ação de seu guia: “(...) esse espírito jamais me deixou. Deu-me inúmeras provas de grande superioridade e sua intervenção benévola e eficaz me foi manifesta tanto nos negócios da vida material quanto no que se refere às coisas metafísicas”. 

[16] Paris, mar/1860. A primeira edição é de abr/1857. 

[17] The Lost Gospel, 1993. 

[18] O Livro dos Médiuns, XXXI:9. Revista Espírita. Jun/1863: Algumas refutações: “um espírito puro, enviado à Terra com missão divina”. 

[19] A Gênese, I: 41: “não é simplesmente um filósofo”; XV: 2: “seria mais do que um profeta”. 

[20] Zelota. A vida e a época de Jesus de Nazaré. 11. Quem vós dizeis que eu sou? Trad.: Marlene Suano. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.