4. Ensino geral espírita.

4. Ensino geral espírita. 

Quem reclama aplicação moderna da norma de generalidade do ensino, com a qual Kardec avaliava os dizeres dos espíritos, esquece que seu controle universal serviu apenas para estabelecer os princípios da doutrina espírita; não foi aplicado, como salientou o mestre, a conteúdos adjacentes. Para Kardec, só a concordância havida, em várias localidades, das revelações espontâneas dos espíritos mediante grande número de médiuns estranhos uns aos outros, ofertava-lhes uma segurança mínima; não se tratando, contudo, dos assuntos de menos relevância, sim dos princípios da doutrina, enunciados de modo concomitantemente idêntico em diversos pontos, senão pela forma, pelo fundo.[1] Tal situação, no século 19. E hoje? O maior óbice à aplicação desse controle seria a espontaneidade. Com a doutrina difundida mundo afora e a telecomunicação instantânea entre todos os pontos do planeta, que espontaneidade seria confiável? Haveria nos médiuns contemporâneos um maior nível de isenção que aquele suposto na época anterior ao assentamento da doutrina por Kardec?[2] Tem-se visto médiuns psicografando e defendendo, eles mesmos, o que pensam sobre assuntos tratados nos livros que “recebem”. Será coincidência que antagonizem a obra do mestre, ou até a contrariem ao mesmo tempo em que a aclamem? 

Se novos princípios resultassem de aplicação moderna desse controle, poderiam contradizer os estabelecidos no séc. 19? Kardec respondeu negativamente a isso; deixou claro, além de tudo, que os ensinos dos espíritos, ainda que majoritários e concordantes, não dispensavam o julgamento incansável da razão, de sua razão,[3] o que assim repisou: “A opinião da maioria dos espíritos é um poderoso controle para o valor dos princípios da doutrina, mas não exclui o do julgamento e da razão, cujo uso incessante todos os espíritos sérios recomendam”.[4] Infere-se daí o sensível contrapeso do julgamento e, pois, da razão do mestre, no processo de constituição do spiritisme, que o distinguiu do new spiritualism, do spiritism anglo-americano. Mais que isso: o gênio dialógico de Kardec se interpunha a distorções pontuais do ensino já concordante, evitando que se propagassem efeitos decorrentes. Supô-lo coadjuvante é, portanto, um equívoco. Ele mesmo o disse: “Haveria puerilidade em crer que, fazendo abnegação de nossa iniciativa, não obedeceríamos, como instrumento passivo, senão a um pensamento que se nos impunha”.[5] Se princípios fossem ditados sob a eventual aferição de um novíssimo controle do ensino geral dos espíritos, creio eu que não contraditariam o consignado kardeciano. Seres de fato superiores não se contradizem. Dessarte, o melhor padrão de aferição das comunicações mediúnicas é Kardec, adicionadas a pesquisa científica e a análise filosófica, conforme o assunto.[6] Só isso pode garantir a qualidade daquilo que hoje escrevem do aquém e do além sob o epíteto de doctrine spirite. Caso se queira, a exemplo de Emmanuel, divulgar filosofia espiritualista,[7] é que não se tem compromisso com a doutrina espírita tão só; caso ainda assim se afirme tê-lo, prevarica-se, porque não é seguro um espiritismo que se pretenda hígido a contrariar as normas de Kardec.[8]

Tem-se preterido o legado normativo de Kardec. Sua lição, a despeito do que pareça a uma primeira vista, não leva a engessamento, sim a prudente relativização, até do ensino geral exarado sob as cautelas kardecianas. Disse Kardec, no fim de sua carreira, que as comunicações dos espíritos são opiniões e não devem ser aceitas cegamente pelo nosso julgamento e livre-arbítrio, pois seria prova de ignorância e leviandade aceitar como verdades absolutas tudo quanto vem deles, que só falam do que sabem e, portanto, a submissão dos seus ensinos à lógica e à razão é hoje tarefa de todos nós.[9] Não se empolguem com meu dizer sobre relativizações até de ensinos gerais. André Luiz e congêneres, clamam seus entusiastas, inovaram, mas os espíritos já haviam relatado essas ilusões de uma vida praticamente física no além desde sempre, e Kardec enquadrou tudo conforme os critérios do seu método. Essas normas por ele assentadas não são hoje usadas para qualquer aferição, com a desculpa de que vêm aí coisas inteiramente novas. Ora; vimos que, para invalidar o primeiro ensino geral, os espíritos superiores deveriam mudar e dizer, no presente, o contrário do que ontem disseram. Não estavam cientes? Exempli gratia, sabe-se que os espíritos não têm órgãos, nem podem satisfazer necessidades típicas do corpo; que uma coisa é a ilusão em que muitos deles podem estar e, outra, bem diversa, a realidade de sua situação. Mas veio André Luiz e subverteu isso, desmentindo princípios da universalidade do controle kardeciano. Que fizeram os espíritas brasileiros, em sua maioria? Encorajaram esse padrão com sua credulidade excessiva, por conta da santidade de Chico Xavier, e misturam, agora, água e óleo, dizendo que André Luiz completa, subsidia Kardec. Outros asseveram mesmo que o primeiro supera e substitui o segundo, sendo que já existiriam os que suplantam o próprio André Luiz. Sim, porque, afinal, mais não fazem os novos cronistas que irem aonde o autor de Nosso Lar os autorizou a ir. Se existem pássaros no além, porque não colocariam ovos? Se os espíritos casam e coabitam no mundo espiritual, por que não filhos, reencarnação por lá? Não é de admirar; um mero efeito da institucionalidade federativa e do mito rustenista que nela surgiu e se alimentou: a infalibilidade mediúnica de Chico Xavier, herdada de E. Collignon, médium belga do neodocetismo (des)organizado por J.-B. Roustaing no mais completo isolamento.[10]

Como sempre digo: ler é perigoso. Porque é estabelecer relações. Mas, nisso, também por vezes enxergar o que não existe no texto lido. É o caso de muitos articulistas espíritas defensores dos chacras e do aura no espiritismo. Não raro, inserem-se na tentativa de confirmar Chico Xavier/André Luiz mediante recortes de literaturas clássicas, aliás, bem distintas, como Kardec e Denis. Este último, por sinal, sempre dividido entre elogiar Kardec e subvertê-lo.[11] A matéria densa tem um estado radiante e nada, nada isso tem a ver com o perispírito, que está para além dela e não possui em si centros de força ou vitalidade, simplesmente porque não é um corpo físico, orgânico, nem esses centros de vitalidade se referem, ali, no Livro dos Espíritos, a nada sequer parecido com a estética hindu de chacras físicos e espirituais. Kardec a eles nunca recorreu.[12] Que a verdade seja uma só, não duvido. Mas convém se não misturem esses olhares distintos acerca da dita-cuja. Ressalto-o, pois muito se ouve espíritas, sobretudo médicos, dizerem que as obras de Chico Xavier/André Luiz estão comprovadas cientificamente. Ora; tais comprovações, assim supostas, devem ser informadas urgentemente às academias. Nenhuma atribuiu, até aqui, coisa alguma ao “corpo fisiopsicossomático” — recuso-me a chamar esse comboio silábico de perispírito. Conceito, por sinal, a elas completamente alheio. “Científica comprovação” para quem? Comunicada essa façanha às academias, finalmente o espiritismo alcançaria sua tão sonhada cidadania de ciência e deixaria de ser, para essas academias, o que tem sido desde seu nascimento estadunidense: uma pseudociência. Seria um fato a ser comemorado. Fico na torcida de espírita sincero. O mesmo quanto ao magnetismo animal, ou mesmerismo, outra pseudociência para as academias. Foi abandonado completamente. É importante para o espiritismo porque lhe emprestou seus modelos teóricos, sendo seu irmão mais velho. Kardec nunca lançou interdição às práticas magnéticas.[13] Era um magnetista. Não sendo certo que fosse magnetizador. Mas também não se sabe como eram utilizadas na sua Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Entendo que todo esse conceito mesmerista acabou reduzido por Kardec, no seu espiritismo, à ação do pensamento sobre os fluidos, relegada a papel secundário toda e qualquer gestualidade, que o gênio de nosso tempo deve instruir no melhor senso, evitando trejeitos ou toques abusivos, em face do que importa realmente: a qualidade do fluido emitido pelo magnetizador, encarnado, desencarnado, ou por ambos em acordo. Vale a leitura do cap. XIV de A Gênese e das Revistas Espíritas de abr-set/1865.[14]

De volta à suposta cartografia do mundo espírita, em ago/1863, o espírito do sr. Cardon, evocado por Kardec, reportou-lhe que vira o esplendor de “um céu” só possível aos sonhos, quando, em rápida excursão pelo “infinito”, percorreu “lugares etéreos”. E é tudo que de mais detalhado existe nas páginas kardecianas sobre o “além” e sua natureza. Cada um o imagina como quer. Mais intrigante é, sem dúvida, a declaração sui generis do espírito Mesmer publicada em mai/1865 e que, mal lida, empolga mais os que aguardam o mundo espiritual abrigando uma experiência, digamos, geofísica, semelhante à terrena; mas dura pouco essa alegria: “O mundo dos invisíveis é como o vosso. Em vez de ser material e grosseiro, é fluídico, etéreo, da natureza do perispírito, que é o verdadeiro corpo do espírito, haurido nesses meios moleculares, como o vosso se forma de coisas mais palpáveis, tangíveis, materiais. O mundo dos espíritos não é o reflexo do vosso; o vosso é que é uma imagem grosseira e muito imperfeita do reino de além-túmulo”. Claro e evidente que o nosso mundo é que é imagem grosseira e imperfeita do além-túmulo. Por lá, as coisas não se podem passar como por aqui: afinal, lá não se morre mais. E justo por essa razão, disse Kardec: “Há sensações que têm sua fonte no próprio estado de nossos órgãos. Ora; as necessidades inerentes ao nosso corpo não podem ocorrer, desde que o corpo não existe mais. O espírito, portanto, não experimenta fadiga nem necessidade de repouso ou de nutrição, porque não tem nenhuma perda a reparar, como não é acometido por nenhuma de nossas enfermidades. As necessidades do corpo determinam as necessidades sociais que, para os espíritos, não mais existem, tais como as preocupações dos negócios, as discórdias, as mil e umas tribulações do mundo e os tormentos a que nos entregamos para garantirmos as necessidades ou as coisas supérfluas da vida”.[15]

Oras, o governador da cidade Nosso Lar se apoia num cajado de substância luminosa; manda irmãos a calabouços por crime de intercâmbio clandestino (contrabando) de carboidratos e proteínas, vícios de alimentação por lá; a turma tem sala de banho; acredita em almas gêmeas; paga ingresso em eventos, e de alto a baixo na escala espírita dependem de alimentação, donde haver pomares e fábricas de sucos; mas não só: também de utensílios e roupas, com a devida mão de obra que, assim, regenera milhões de espíritos. Tudo, menos kardecismo. Kardec ensina que há vida depois da morte; não que esta vida (que vivemos agora) continua depois dela. Diz Kardec sobre a ideia de vida depois da morte no Alcorão (Surata XXXVII, v. 39 a 47): “Sem dúvida se notará que os rios, as fontes, os frutos abundantes e as sombras aí representam grande papel, por faltarem sobretudo aos habitantes do deserto. Os leitos macios e as roupas de seda, para gente habituada a dormir no chão e vestida com grosseiras peles de camelo, também deviam ter grande atrativo. Por mais ridículo que tudo isto nos pareça, pensemos no meio em que vivia Maomé e não o censuremos muito, pois, com o auxílio deste atrativo, ele soube tirar um povo da barbárie e dele fazer uma grande nação”. E o que diria Kardec de Nosso Lar e cia.? — Não censuremos muito André Luiz e congêneres porque assim trazem muitos católicos para o espiritismo? — Duvido. Kardec identificaria a inverossimilhança perante os princípios de suas obras fundamentais e diria que, embora coincida em certos pontos com a doutrina espírita, em sua maior parte está em contradição com os dados da ciência e o ensino geral dos espíritos, embora a relacionasse, decerto, no seu Catálogo Racional de Obras para a Formação de uma Biblioteca Espírita; porém com essa ressalva, como o fez a alguns livros, inclusos na categoria geral das “obras diversas sobre o espiritismo” e, nem por isso, obrigatoriamente “complementares da doutrina”. 

Verdade que Kardec registrou, para legiões de espíritos, uma prolongação mista da vida terrena, uma vida intermediária, nem física nem propriamente espiritual. Esses dizeres, porém, roubados a seu contexto, não têm o condão de salvar as “reportagens” andreluizinas. Kardec, otimista, disse que os espíritas escapam naturalmente a essa condição intermediária. André Luiz parece não o desejar. Montou até uma cidade sobre o Rio de Janeiro para que se possa habitar confortavelmente por séculos de ilusão ainda das necessidades físicas. No entanto, não; não há correspondência entre a vida intermediária de Kardec, exclusivo fruto da persistência de interação com a vida corporal a que não se pertence mais, e a estada em cidades no além. A Revista Espírita de jun/1868 não permite dúvidas: “(...) deixando seu invólucro carnal, certos espíritos continuam a vida terrestre com as mesmas vicissitudes, durante um tempo mais ou menos longo. Isto parece singular, mas é, e a observação nos ensina que tal é a situação dos espíritos que viveram mais a vida material do que a vida espiritual, situação por vezes terrível, porque a ilusão das necessidades da carne se faz sentir, e se tem todas as angústias de uma necessidade impossível de satisfazer. O suplício mitológico de Tântalo, nos Antigos, acusa um conhecimento mais exato do que se supõe, do estado do mundo de além-túmulo, sobretudo mais exato que entre os modernos. Sim, legiões de espíritos continuam a vida corporal com suas torturas e suas angústias. Mas quais? Os que ainda estão muito avassalados à matéria para dela se desprenderem instantaneamente. É uma crueldade do Ser Supremo? Não; é uma lei da natureza, inerente ao estado de inferioridade dos espíritos e necessária ao seu adiantamento; é uma prolongação mista da vida terrena durante alguns dias, alguns meses, alguns anos, conforme o estado moral dos indivíduos. (...) Aliás, não depende de cada um escapar a essa vida intermediária, que, francamente, nem é a vida material, nem a vida espiritual? Os espíritas a ela escapam naturalmente, porque, compreendendo o estado do mundo espiritual antes de nele entrar, imediatamente se dão conta de sua situação”.[16]


[1] O Evangelho segundo o Espiritismo. Introdução: II. 

[2] O Livro dos Espíritos. Introdução: XVI. 

[3] A Gênese. Introdução. 

[4] Revista Espírita. Mar/1868: Comentários sobre os messias do espiritismo. Edicel, p. 75. Obs.: Registre-se aqui um erro na tradução febiana: “mas não exclui o do julgamento e da razão, cujo uso sério todos os espíritos recomendam”, o que não corresponde ao original: “mais qui n'exclut pas celui du jugement et de la raison, dont tous les Esprits sérieux recommandent sans cesse de faire usage”. 

[5] Revista Espírita. Mar/1868. Edicel, p. 75. 

[6] Descrições falsas de Vênus e Marte, por exemplo, bem como outras imprecisões de várias naturezas, fazem parte dos textos clássicos da doutrina espírita, mas não constituem princípios da mesma. Entenda-se-o bem. Sob pena de obscurantismo. Isso se atualiza, sim, conforme os tempos. Kardec o recomenda. Do contrário, o que distinguiria kardecistas dos mais arcaicos biblicistas? Nada. 

[7] Emmanuel (1938). Explicando. F.E.B., 15ª ed., 1991, p. 15. 

[8] ALEIXO, Sergio F. Que Espiritismo É o Nosso? Vol. II. 

[9] Revista Espírita. Abr/1869: Profissão de fé espírita americana. 12. 

[10] ALEIXO, Sergio F. O Primado de Kardec. Rio de Janeiro: ADE-RJ, 2011. oprimadodekardec.blogspot.com.br

[11] ALEIXO, Sergio F. Que Espiritismo É o Nosso? Vol. II. 

[12] Cf. cap. 15 deste trabalho: Perispírito. 

[13] Em set/1865, em seu artigo sobre a mediunidade curadora, n. 4, diz Kardec: “(...) seria imprudência submeter-se à ação magnética do primeiro desconhecido. Abstração feita dos conhecimentos práticos indispensáveis, o fluido do magnetizador é como o leite de uma nutriz: salutar ou insalubre”. Quais são esses conhecimentos práticos julgados ali indispensáveis, senão os das técnicas mesmeristas? Isso, ressalto-o, ao magnetizador puro e simples, ao não espírita sobretudo, não já ao médium curador. Este pode tornar-se naquele primeiro se debaixo de assistência espiritual. Diz Kardec no n. 8: “(...) os médiuns curadores são todos mais ou menos magnetizadores, razão por que agem conforme os processos magnéticos (...)”. Ainda parece indispensável o domínio do mesmerismo. Contudo, finaliza o mestre no n. 12, deixando-nos na esteira do passe magnético entre os kardecistas de hoje: “O conhecimento dos processos magnéticos é útil em casos complicados, mas não indispensável. Como a todos é dado apelar aos espíritos bons, orar e querer o bem, muitas vezes basta impor as mãos sobre uma dor para a acalmar; é o que pode fazer qualquer pessoa, se trouxer a fé, o fervor, a vontade e a confiança em Deus”. 

[14] Abril: Poder curativo do magnetismo espiritual. Setembro: Mediunidade curadora. 

[15] Revista Espírita. Abr/1859. Quadro da Vida Espírita. 

[16] A morte do sr. Bizet, cura de Sétif - A fome entre os espíritos. Cf. também jun/1866: Visão retrospectiva das várias encarnações de um espírito – Sono dos espíritos.