22. Resignação.



22. Resignação. 

A cada ciência o seu objeto. O espiritismo cuida da alma, vê pelo prisma da evolução do espírito. Tudo certo, mas sempre em termos. Onde está dito na doutrina espírita que a resignação seja passividade ante as injustiças e os desmandos de quem detém poder, seja político, seja também econômico, aliás sempre mancomunados? O que devemos fazer como bons espíritas? O que é caridade nesse caso? Kardec diz sobre o bom espírita: “Possuído do sentimento de caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo bem, sem esperar paga alguma; retribui o mal com o bem, toma a defesa do fraco contra o forte e sacrifica sempre seus interesses à justiça”.[1] Por que será então que quando se critica o capitalismo, ou mais propriamente as formas de sua sociabilidade usurária, alguém sempre lembra do tema resignação de modo seletivo, aconselhado ao socialista, ao comunista, visto como revoltado sem causa, invejoso inconsequente, ou, por outra, ao pobre, julgado em provas ou expiações inamovíveis tão só? Leia-se isto: “Pode dar-se que um homem nasça em posição penosa e difícil, precisamente para se ver obrigado a procurar meios de vencer as dificuldades. O mérito consiste em sofrer, sem murmurar, as consequências dos males que lhe não seja possível evitar, em perseverar na luta, em se não desesperar, se não é bem-sucedido; nunca, porém, numa negligência que seria mais preguiça do que virtude.”[2] Sofrer sem murmurar, mas não sem lutar; não é o conformismo que se aconselha. Ora; exatamente quais efeitos de que males não nos seria possível evitar? Os resultados maléficos, por exemplo, que mais amplamente considerados se conjugam na desigualdade das condições sociais, ao contrário do que se propala, de modo nenhum vêm a constituir uma lei da natureza, uma obra de Deus; segundo os guias kardecistas, essa desigualdade exclusivamente se deve ao ser humano.[3] De fato, somos, pois, estimulados a lutar, a melhorar de vida e a própria vida, excluídas extravagâncias ridículas do egoísmo, e não a nos conformar com miséria ou pobreza, seja nossa, seja alheia, menos ainda frente aos desmandos que as ocasionam e impedem que, exempli gratia, o trabalho honesto prevaleça; quem se impõe em geral são as manipulações do capital especulativo, ao atingirem os setores público e/ou privado, quebrando mesmo quem produz desde que isso interesse a uns poucos, em detrimento das reais necessidades de bilhões de seres, que restam desprezados ante nefandas maquinações numéricas, que a mobilização consciente da maioria explorada, por sinal, reduziria a pó. 

A resignação bem entendida, como fonte de serenidade e discernimento em meio às lutas físicas e morais, não deve ser lembrada no interesse e fomento da alienação ou do imobilismo na doutrina espírita, porque, nesta, a isso não corresponde. Nem se deve abusar, outrossim, do princípio de submissão às leis. É sabido que direito e justiça nem sempre marcham pari passu. Por lapidar, leia-se até mais não poder: “Não digais, pois, quando virdes atingido um dos vossos irmãos: ‘É a justiça de Deus, importa que siga o seu curso.’ Dizei antes: ‘Vejamos que meios o Pai misericordioso me pôs ao alcance para suavizar o sofrimento do meu irmão. Vejamos se as minhas consolações morais, o meu amparo material ou meus conselhos poderão ajudá-lo a vencer essa prova com mais energia, paciência e resignação. Vejamos mesmo se Deus não me pôs nas mãos os meios de fazer que cesse esse sofrimento; se não me deu a mim, também como prova, como expiação talvez, deter o mal e substituí-lo pela paz’”.[4] E à eventual falácia meritocrática neoliberal, recomendem-se estes desvelamentos: “O orgulho é o terrível adversário da humildade. Se o Cristo prometia o Reino dos Céus aos mais pobres, é porque os grandes da Terra imaginam que os títulos e as riquezas são recompensas deferidas aos seus méritos e se consideram de essência mais pura do que a do pobre. Julgam que os títulos e as riquezas lhes são devidos, pelo que, quando Deus lhos retira, o acusam de injustiça. Oh! irrisão e cegueira!”[5] — “Infelizmente, sempre há no homem que possui bens de fortuna um sentimento tão forte quanto o apego aos mesmos bens: é o orgulho. Não raro, vê-se-o atordoar, com a narrativa de seus trabalhos e de suas habilidades, o desgraçado que lhe pede assistência, em vez de acudi-lo, e acabar dizendo: ‘Faça o que eu fiz.’ Segundo o seu modo de ver, a bondade de Deus não entra por coisa alguma na obtenção da riqueza que conseguiu acumular; pertence-lhe a ele, exclusivamente, o mérito de a possuir. O orgulho lhe põe sobre os olhos uma venda e lhe tapa os ouvidos. Apesar de toda a sua inteligência e de toda a sua aptidão, não compreende que, com uma só palavra, Deus o pode lançar por terra”.[6]



[1] O Evangelho segundo o Espiritismo, XVII: 3. Obs.: O período estava assim originalmente: “Possuído do sentimento de caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo bem, sem contar com qualquer retribuição, e sacrifica seus interesses à justiça”. (O Livro dos Espíritos, 918.) Portanto, Kardec lhe impôs as alterações “retribui o mal com o bem, toma a defesa do fraco contra o forte.” 

[2] O Evangelho segundo o Espiritismo, V: 26. 

[3] O Livro dos Espíritos, 806. 

[4] O Evangelho segundo o Espiritismo, V: 27. 

[5] O Evangelho segundo o Espiritismo, VII: 11. 

[6] O Evangelho segundo o Espiritismo, XVI: 14.