19. Racismo.


19. Racismo. 

19.1. Kardec. 

Reduzir o nível de oportunidade do espiritismo a sua dimensão ética seria desconhecê-lo. A isso respondera Kardec dizendo que, fora do ensinamento puramente moral, os resultados do espiritismo não são tão estéreis quanto pretendem alguns.[1] O mestre lhes é, por isso, um incômodo permanente, razão pela qual sempre buscam levantar-lhe fraquezas, a fim de tentarem minar o poder de influência que tem sua obra, e só ela, para conferir ao espiritismo uma racionalidade principiológica mínima. A limitação mais explorada tem sido o racismo emergente de algumas de suas asserções. De fato, choca o depararmo-nos com dizeres assim: 

“Arago jamais será, numa pele negra, membro do Instituto”; “como organização física, os negros serão sempre os mesmos; como espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior, isto é, primitiva; são verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar”; “a raça negra, enquanto raça negra, corporalmente falando, jamais atingirá o nível das raças caucásicas”; “os homens só nascem inferiores e subordinados pelo corpo”; “o ardor do Sol nunca transformou um branco em negro, nem lhe achatou o nariz, ou mudou a forma dos traços da fisionomia, nem lhe tornou lanzudo e encarapinhado o cabelo comprido e sedoso”; “o negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato; mas, não é belo em sentido absoluto, porque seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem exprimir as paixões violentas, mas não podem prestar-se a evidenciar os delicados matizes do sentimento, nem as modulações de um espírito fino; daí o podermos, sem fatuidade, creio, dizer-nos mais belos do que os negros e os hotentotes”.[2]

Felizmente, vai-se hoje a ferros caso se sustente excrescências desse tipo. Mas como exigir de um europeu do século dezenove, abolicionista e republicano que fosse, a ausência, em si, de um grau qualquer de racismo? Cumpre dimensionar a gradação desse racismo em Kardec para que se lhe faça justiça. Primeiramente, porque, nele, o racismo se deve à grave limitação biogenética e antropológica de sua época. Só mais tarde, essas ciências reduziriam a pó todo conceito de superioridade racial. Depois, porque Kardec era um pedagogo humanista; jamais cogitou que estivesse fazendo algum mal ao especular com tais ideias, não raro contrabalançadas, aliás, por dizeres que, decerto, desagradavam racistas propriamente ditos, falas como as abaixo grifadas e que, de propósito, omiti acima: 

“(...) como organização física, os negros serão sempre os mesmos; como espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior, isto é, primitiva; são verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já constitui um progresso que levarão para outra existência e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório em melhores condições. Trabalhando em sua melhoria, trabalha-se menos pelo seu presente que pelo seu futuro e, por pouco que se ganhe, para eles é sempre uma aquisição.”[3]

“(...) a raça negra, enquanto raça negra, corporalmente falando, jamais atingirá o nível das raças caucásicas; mas, na qualidade de espírito, é outra coisa: pode tornar-se e tornar-se-á aquilo que somos. Apenas necessitará de tempo e de melhores instrumentos.”[4]

“Os homens só nascem inferiores e subordinados pelo corpo; pelo espírito eles são iguais e livres. Daí o dever de tratar os inferiores com bondade, benevolência e humanidade, porque aquele que hoje é nosso subordinado pode ter sido nosso igual ou nosso superior, pode ser um parente ou um amigo, e nós, por nossa vez, podemos vir a ser o subordinado daquele que hoje comandamos.”[5]

“O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato; mas, não é belo em sentido absoluto, porque seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem exprimir as paixões violentas, mas não podem prestar-se a evidenciar os delicados matizes do sentimento, nem as modulações de um espírito fino. Daí o podermos, sem fatuidade, creio, dizer-nos mais belos do que os negros e os hotentotes. Mas, também pode ser que, para as gerações futuras, melhoradas, sejamos o que são os hotentotes com relação a nós. E quem sabe se, quando encontrarem os nossos fósseis, elas não os tomarão pelos de alguma espécie de animais”.[6]

Enquanto se acreditava que negros escravos eram seres brutos, pouco inteligentes, incorrigíveis e profundamente incapazes, Kardec sustentava, portanto, a possibilidade de encará-los sob outro prisma: o de serem tão perfectíveis quanto europeus civilizados, quer corporal, quer espiritualmente. Segundo a teoria espírita do progresso das almas pela educação intelecto-moral e pela reencarnação, a raça negra só precisaria, assim, de tempo para evoluir ao mesmo ponto corporal e espiritual da raça caucásica.[7] Se Kardec preconizou, desse modo, a superioridade de um grupo racial sobre os demais, o que já é, sim, racismo, o fato é que isso nunca se fez acompanhar do desejo de segregação ou extermínio de grupos étnicos, razão pela qual falo de uma justiça a lhe ser feita, porque seu racismo estava na contramão dos rumos desse tráfego nefasto. Ou seria um racista bem tipificado de nossos dias alguém que escreveu, por exemplo, isto: 

“(...) o espiritismo, restituindo ao espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, faz que desapareçam, naturalmente, todas as distinções estabelecidas entre os homens, conforme as vantagens corporais e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor.”[8] — “(...) do estudo dos seres espirituais ressalta a prova de que esses seres são de natureza e de origem idênticas, que seu destino é o mesmo, que todos partem do mesmo ponto e tendem para o mesmo objetivo; que a vida corporal não passa de um incidente, uma das fases da vida do espírito, necessária ao seu adiantamento intelectual e moral; que em vista desse avanço o espírito pode sucessivamente revestir envoltórios diversos, nascer em posições diferentes, chega-se à consequência capital da igualdade de natureza e, a partir daí, à igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e à abolição dos privilégios de raças. Eis o que ensina o espiritismo.”[9] — “Com a reencarnação desaparecem os preconceitos de raças e de classes, pois que o mesmo espírito pode renascer rico ou pobre, grande senhor ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que supere em lógica o fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação fundamenta sobre uma lei da natureza, o princípio da fraternidade universal, ela fundamenta sobre a mesma lei o princípio da igualdade dos direitos sociais e, por consequência, o da liberdade”.[10]

A acusação, pois, de racismo a Allan Kardec, além de clara motivação ideológica oportunista, padece do vício de anacronismo, porque, nele, o racismo permaneceu no nível da fatalidade científica de seu tempo, sem jamais projetar-se, entretanto, no rumo da segregação social ou, menos ainda, do extermínio étnico; bem ao contrário, como se viu. Kardec via um paralelismo evolutivo entre corpo e alma; de início, admitindo que a natureza apropriara os corpos ao grau de desenvolvimento dos espíritos que neles deveriam encarnar e, por fim, concluindo que os próprios espíritos modelaram seus corpos, ao longo de milênios, adequando-os a suas novas necessidades; talhando-os, por assim dizer, à sua inteligência; bem como ainda imprimindo às suas feições traços de caráter,[11] coisa essa, hoje, reconhecidamente esdrúxula. Progressista até sua constituição mais íntima, a doctrine spirite não se compadece com nenhuma forma de obscurantismo e propugna pela mais ampla e irrestrita fraternidade. O que parece mais viável nesse porém evolucionário é que as mutações adaptativas seletoras das espécies não hajam sido mera casualidade e os espíritos tenham dado mesmo sua contribuição. Onde começou, onde terminará, no entanto, não se sabe. Uma coisa é certa. Conforme o axioma do mestre espírita: Un hasard intelligent ne serait plus le hasard: Um acaso inteligente não seria mais acaso.[12]

19.2. São Luís. 

Antes de tudo, saiba-se que, na SPEE, frequente era que os guias se comunicassem por médiuns distintos e em épocas diferentes. A resposta de São Luís pode ter sido vazada na forma infracitada por imperfeição do trabalho de um só desses médiuns. Seria precipitado malsinar o espírito com base nessa única situação, sem evidência de isso corresponder, nele, a um padrão inferior qualquer. Na evocação de le nègre Pa César: o negro Pai César, além do mais, o médium atua como intermediário de dois espíritos: São Luís, que auxilia nas respostas, e o negro Pai César, submetido a essa ajuda. Existe a possibilidade de o médium não ter filtrado bem os recados, ou os ter entrecruzado. A opinião, por sinal, de que a brancura conferiria superioridade é, ali, não de São Luís, mas do negro Pai César e, ainda assim, não por conta da cor branca, mas das relações injustas de poder naquela sociedade. O negro Pai César chega a dizer que estava mais feliz que na Terra porque seu espírito não era mais negro; isto é, por não estar mais sujeito às humilhações aqui sofridas, não sendo o espírito rico ou pobre, homem ou mulher, velho ou criança, negro ou branco. Todavia, numa inesperada inferência, dada sua condição, afirmou o ex-escravo que os brancos eram orgulhosos de uma alvura de que não eram a causa. Parece mais São Luís, aí, do que Pai César. 

De qualquer forma, causa desconforto a resposta equívoca: “9. [A São Luís]. — A raça negra é de fato uma raça inferior? Resp. — A raça negra desaparecerá da Terra. Foi feita para uma latitude diversa da vossa”.[13] Agora já pareceu mais o negro Pai César algo frustrado com sua encarnação anterior do que São Luís, o qual responde assim à última pergunta de Kardec: “12. [A São Luís]. — Algumas vezes os brancos reencarnam em corpos negros? Resp. – Sim. Quando, por exemplo, um senhor maltratou um escravo, pode acontecer que peça, como expiação, para viver num corpo de negro, a fim de sofrer, por sua vez, o que fez padecer os outros, progredindo por esse meio e obtendo o perdão de Deus”.[14] Como quer que tenha sido essa sessão com São Luís, há realmente desconfortável inferência de que a reencarnação nos corpos de negros seria apenas uma rara exceção punitiva de brancos maus (“algumas vezes”), nunca opção natural de avanço sem conteúdo necessariamente expiatório a quem quer que seja; o que só não repugna de todo à razão por saber-se das deploráveis condições impostas pelo colonialismo europeu aos africanos, apartados de tudo que fora um dia seu, pela ganância desenfreada da raça superior. Superior? Só se fora em vileza mercantilista melhor equipada que a dos escravagistas negros de África. 
19.3. MPF. 

Não há muito, oportunamente apareceu nota explicativa da Federação Espírita Brasileira repelindo toda possibilidade de inferência discriminatória ou preconceituosa na doutrina espírita bem entendida; motivada foi, contudo, por atuação do Ministério Público Federal. A FEB sempre foi mais dedicada a consignar notas que contestem Kardec, como a que corresponde à Gênese, XV, 66, defendendo o corpo fluídico de Jesus no momento mesmo em que o mestre o repele em definitivo. Eis, pois, a nota ao título da nota explicativa, a esclarecer a situação da feitura da peça: “Nota da Editora: Esta ‘Nota Explicativa’, publicada em face de acordo com o Ministério Público Federal, tem por objetivo demonstrar a ausência de qualquer discriminação ou preconceito em alguns trechos das obras de Allan Kardec, caracterizadas, todas, pela sustentação dos princípios de fraternidade e solidariedade cristãs, contidos na doutrina espírita”.[15] Como vimos, nesses trechos da doutrina não é exatamente ausência de preconceito e discriminação que se vê. Mais vale dimensioná-los que negá-los. Foi o que preferi fazer. De todo modo, dada a relevância do assunto, é de se lamentar que as referências das citações da Revista Espírita nessa nota explicativa febiana hajam sido registradas algo descuidadamente. Das cinco citações diretas da Revista, nenhuma é vinculada ao tópico a que corresponde e só duas indicam o mês, o que dificulta sobremodo encontrá-las, e às demais, nos volumes de outras editoras. Por sinal, um dos textos foi reproduzido sem menção ao número de sua página nas edições da FEB e, ainda, reportando-se ao mês errado. Onde se lê janeiro de 1863, leia-se p. 87, fevereiro de 1863: “Nós trabalhamos para dar a fé aos que em nada crêem; para espalhar uma crença que os torna melhores uns para os outros, que lhes ensina a perdoar aos inimigos, a se olharem como irmãos, sem distinção de raça, casta, seita, cor, opinião política ou religiosa; numa palavra, uma crença que faz nascer o verdadeiro sentimento de caridade, de fraternidade e deveres sociais”.[16] Kardec e São Luís não foram, pois, racistas, senão na medida quase comum do tempo em que os brancos, sim, consideravam-se superiores; o mestre, porém, teve esta vantagem soberba: se os erros bioantropológicos do seu século o autorizaram a crer em raças humanas primitivas e, dessarte, que alguns nascem inferiores e subordinados pelo corpo, a isso nunca deixou Kardec de contrapor a medida libertária do pensamento espírita, de que, pelo espírito, somos iguais e livres, nem homens nem mulheres, nem crianças nem velhos, nem ricos nem pobres, nem brancos nem negros, o que levou o mestre à postura marcadamente política da defesa da igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e da abolição dos privilégios de raças. Quem dera todos os racistas pensassem hoje assim. 


[1] Revista Espírita. Ago/1865: O que ensina o espiritismo. 

[2] Revista Espírita. Abr/1862: Frenologia espiritualista e espírita. Perfectibilidade da raça negra. A Gênese, I: 36 (Léon Denis Gráfica e Editora, 2ª ed., Rio, 2008. Trad.: Albertina Escudeiro Sêco, 4ª ed. francesa, 1868) e XI: 39 (FEB, 5ª ed. francesa, 1870). Obras Póstumas: Teoria da Beleza. 

[3] Revista Espírita. Abr/1862: Frenologia espiritualista e espírita. Perfectibilidade da raça negra. 

[4] Revista Espírita. Abr/1862: Frenologia espiritualista e espírita. Perfectibilidade da raça negra. 

[5] A Gênese, I: 36. (Léon Denis Gráfica e Editora, 2ª ed., Rio, 2008. Trad.: Albertina Escudeiro Sêco, 4ª ed. francesa, 1868.) Obs.: Parágrafo ausente nas edições da FEB, baseadas na 5ª ed. francesa, 1870.) 

[6] Obras Póstumas. Teoria da Beleza. 

[7] Revista Espírita. Abr/1862: Frenologia espiritualista e espírita. Perfectibilidade da raça negra. 

[8] Revista Espírita. Out/1861. Discurso do Sr. Allan Kardec. F.E.B., 2007, 3ª ed., p. 432. 

[9] Revista Espírita. Jun/1867. Emancipação das Mulheres nos Estados Unidos. F.E.B., 2007, 2ª ed, p. 231. 

[10] A Gênese, I: 36. 

[11] Revista Espírita. Abr/1862: Frenologia espiritualista e espírita. Perfectibilidade da raça negra. A Gênese, XI: 11. 

[12] O Livro dos Espíritos, 8. 

[13] Revista Espírita. Jun/1859. O negro Pai César. F.E.B., 2007, 3ª ed., p. 245. 

[14] Revista Espírita. Jun/1859. O negro Pai César. F.E.B., 2007, 3ª ed., p. 245. 

[15] Revista Espírita. ANO I. 1858. F.E.B., 2009, 4ª ed., p. 537. 

[16] Revista Espírita. Fev/1863. A Loucura Espírita. F.E.B., 2007, 3ª ed., p. 87.