16. Puros espíritos.


16. Puros espíritos. 

16.1. Conselho supremo. 

Supôs Kardec que, se subisse incessantemente, a alma nunca chegaria à felicidade perfeita e, por isso, concluiu: La raison dit que l'âme étant un être fini, son ascension vers le bien absolu doit avoir un terme: A razão diz que, a alma, sendo um ser finito, sua ascensão para bem absoluto deve ter um fim. [1] O princípio espiritual iniciaria sua evolução no que os espíritos chamaram: átomo primitivo. E esse princípio encerraria seu progresso presque infini: quase infinito, no arcanjo; que figuraria o estado definitivo dos seres da categoria mais elevada, cuja natureza das ocupações seria receber diretamente os comandos de Deus, pertencendo à classe única da primeira ordem da escala espírita: purs esprits.[2] Kardec somou, depois, a essa primeira ordem, mais classes que a solitária e original classe unique e, enfim, hierarquia se estabeleceu entre puros espíritos; adjetivou-os bem-aventurados; gozariam de todos os esplendores da criação; penetrariam todas as coisas e contemplariam Deus. O detalhe precioso é que ceux de l’ordre le plus eleve: aqueles da ordem mais elevada, ou seja: os que integrariam o conseil suprême: conselho supremo, sous l'oeil même de Dieu: sob o olhar mesmo de Deus, seriam os únicos a possuir-lhe e compreender-lhe os segredos, sendo-lhe représentants directs: representantes diretos. Anote-se o demonstrativo seguido da crase de preposição e artigo: os da, aqueles da, e não de ordem mais elevada; a mais elevada entre os puros espíritos, no caso.[3]

Nessa escala de seres perfeitos, subordinados ao supremo conselho, estariam os chefes superiores, aos quais é incumbida a direção de sistemas planetários e de planetas em particular. Tratar-se-ia, ainda assim, de puros espíritos; Kardec diz que presidiriam à formação desses mundos e mesmo à harmonia geral do Universo, ao que não chegariam senão par la perfection: pela perfeição. Deus não só os julgaria capazes de cumprir essas missões mas os teria, além disso, como incapazes de comprometê-las. Ora; apenas a obtenção da soma de perfeições acessível às criaturas poderia assegurar isso; ou seja, a infalibilidade decorrente de uma absoluta superioridade intelectual e moral. Ao atingir o estado de pureza, os espíritos gozariam de inalterável felicidade; não teriam mais que passar por provas ou expiações; estariam capacitados à contemplação de Deus, à penetração de todas as coisas, mas, lógico agora é supô-lo, na respectiva esfera de particulares limitações atinentes aos seus estádios angélicos. A progressiva conquista de chefias cósmicas, à frente das quais nunca errariam, seria, portanto, o que os conduz ao conselho supremo, a serem os mais dignos entre os dignos, em cuja órbita lhes seriam revelados os segredos de Deus e se tornariam seus representantes diretos. 

Tudo quase impecável até que Kardec decidiu valer-se, depois, do plural: les conseils du Tout-Puissant: os conselhos do Todo-Poderoso, nos quais seriam recebidos os espíritos ao lograrem o ponto culminante do progresso. Culminante? Sim, progresso quase infinito, portanto finda. Talvez sejam esses conselhos os que reuniriam chefias universais de planetas, sistemas, etc., e que, nem por isso, deixariam de se subordinarem àquele conselho supremo dos mais dignos entre os dignos, sob o olhar mesmo de Deus.[4] Menos simétrica é a condição de ministres directs pour le gouvernement des mondes: ministros diretos para o governo dos mundos, que Kardec agora atribui aos puros espíritos de todos os conselhos, não só aos do supremo. Entretanto, a todos não deixaria de assistir a patente, desde que considerada na fronteira de suas responsabilidades, no âmbito das quais seriam de fato os que melhor filtram o pensamento divino, dele impregnados malgrado as subordinações a que se sujeitem no supremo, apenas no qual se poderia ter ao próprio Deus como superior imediato propriamente. 

16.2. Encarnação. 

Kardec elucidou certa feita: “Só nas fileiras inferiores a encarnação é material. Para os espíritos superiores não há mais encarnação material e, consequentemente, não há procriação”.[5] Haveria, pois, encarnações fluídicas, menos grosseiras.[6] Nessa fase, dispensável já seria a procriação e, mesmo a morte, não teria nenhum dos horrores da decomposição, e longe de ser motivo de pavor, seria considerada transformação feliz.[7] Para além, só os puros espíritos. Não mais sujeitos à reencarnação em corpos perecíveis, viveriam exclusivamente a vida espiritual, em que continuariam a progredir, mas agora, segundo Kardec, dans un autre sens et par d’autres moyens: num outro sentido e por outros meios. Sem dúvidas, tratar-se-ia da escala dos puros espíritos, onde a meta seria integrar o conselho supremo; estar entre os dignos mais dignos, sob o olhar mesmo de Deus.[8] Desobrigados da encarnação não significaria, vale salientar, que lhes estaria interdita; cumpririam missões. Eles não teriam nenhuma influência da matéria porque despojados de todas as impurezas da matéria,[9] não de toda a matéria; tanto que possuiriam um corpo etéreo composto pelo fluido universal, ou matéria elementar primitiva, em sua simplicidade absoluta.[10] Kardec, aliás, explicitou que os puros espíritos poderiam encarnar mesmo aqui: C’est ainsi que des Esprits de l’ordre le plus élevé peuvent se manifester aux habitants de la terre, ou s’incarner en mission parmi eux: É assim que os espíritos da ordem mais elevada podem-se manifestar aos habitantes da Terra, ou se encarnar em missão entre eles.[11] Com crase de preposição e artigo: da ordem mais elevada, não de ordem mais elevada. Um guia espiritual dissera e Kardec publicou que os espíritos incumbidos, em cada mundo, da execução das divinas leis, seriam agentes da vontade de Deus sob direção de um délégué supérieur: delegado superior, pertencente nécessairement à l'ordre des esprits les plus eleves: necessariamente à ordem dos espíritos mais elevados; seria injusto Deus abandonar ao capricho de uma criatura imperfeita o destino de milhões. Fala-se, pois, de um ser perfeito, puro espírito. De novo, com preposição e artigo: o chefe superior pertenceria à ordem mais elevada, não a uma ordem qualquer, embora mais elevada. Quando inquirido o guia em França se esse espírito-chefe também poder-se-ia encarnar, respondeu: “Sem dúvida alguma, quando recebe a missão, o que ocorre quando sua presença entre os homens é julgada necessária ao progresso”.[12]

16.3. Jesus. 

Dúvidas não pode haver sobre sua condição doutrinária: l’Esprit pur par excellence: o Espírito puro por excelência. Além disso, Kardec sequer aceitava que outro espírito pudesse ter inspirado Jesus e afirma que o Nazareno, se recebia algum influxo estranho, só poderia ser de Deus.[13] Vieram à baila estudos do grande pedagogo de França sobre a natureza do antigo mestre, nos quais disse: Jésus était un messie divin par le double motif qu'il tenait sa mission de Dieu, et que ses perfections le mettaient en rapport direct avec Dieu: Jesus era um messias divino pelo duplo motivo que ele tinha sua missão de Deus, e que suas perfeições o mantinham em relação direta com Deus.[14] Nessa lógica, o estádio angélico de Jesus seria o mais elevado possível entre os puros espíritos, equivalente ao dos integrantes do conselho supremo; ao dos que nada mais têm de fato a adquirir, únicos a efetivamente dispensar a inspiração de qualquer outro que não seja o próprio Deus. Contudo, Kardec evidenciou crer, outrossim, que l’Esprit de vérité: o Espírito da verdade, seria o presidente da nossa regeneração, o inspirador da doutrina espírita como paráclito prometido e o diretor deste globo;[15] portanto não mais que, do próprio Jesus, um novo nome: “aquele que recebeu a missão de vos regenerar volta, e ele disse: ‘Bem-aventurados os que conhecerem o meu novo nome!’”.[16] Nessa lógica, o estádio angélico de Jesus, o Espírito da verdade, seria o daqueles delegados, ou chefes superiores, já entre os puros espíritos, na incumbência gloriosa a que só correspondem pela sua perfeição: a presidência da formação e a direção de planetas. No caso, da nossa nave Terra. 


[1] Revista Espírita. Set/1862. Poesias Espíritas. Peregrinações da alma. Observação. 

[2] O Livro dos Espíritos, 112, 113, 169, 226, 540 e 562. 

[3] O Céu e o Inferno. 1ª Parte, III, 12 e 13. 

[4] A Gênese, XI: 27 (ou 28). 

[5] Revista Espírita. Jul/1862. Ensinos e dissertações espíritas. Observação. 

[6] O Evangelho segundo o Espiritismo, IV: 24. 

[7] O Evangelho segundo o Espiritismo, III: 8. 

[8] A Gênese, XI: 27 (ou 28). 

[9] O Livro dos Espíritos, 112 e 113. 

[10] O Livro dos Médiuns, 74, quinta pergunta. O Livro dos Espíritos, 186. 

[11] A Gênese, XIV: 9. 

[12] Revista Espírita. Set/1868. A Alma da Terra. Sociedade Espírita de Bordéus. Abril de 1862. 

[13] O Livro dos Médiuns, XXXI:IX; A Gênese, XV:2. 

[14] Obras Póstumas. Estudo sobre a natureza do Cristo, §VIII. 

[15] Cf. cap. 7 deste trabalho: O Espírito da verdade. 

[16] Revista Espírita. Mar/1868. Instruções os Espíritos. A Regeneração.