14. Morte e desprendimento.


14. Morte e desprendimento. 

Morte é para o corpo; desencarnação, para o espírito. Essas palavras, contudo, equivalem-se. Por isso se diz que fulano desencarnou, em vez de se dizer que morreu. Espíritas, somos cientes de que a separação entre alma e corpo raramente é instantânea, donde passarmos, às vezes, dessa equivalência a uma diferença artificial e, pior, nada técnica, entre morte e desencarnação, quando existe, na verdade, entre desencarnação e desprendimento. Kardec utilizou o subst. désincarnation: desencarnação, só duas vezes, por mais que os tradutores o tenham feito aparecer, e a formas do verb. désincarner: desencarnar, onde nunca estiveram. Em O Livro dos Espíritos, p. ex., nenhuma ocorrência há do subst. desencarnação, de qualquer forma do verbo desencarnar, nem do part./adj. désincarné: desencarnado. Kardec se refere, ali, ao incarné: encarnado; ao reincarné: reencarnado, e ao non incarné ou errant: não encarnado ou errante; i. e., ao dégagé du corps: desembaraçado, liberto do corpo. Os tradutores febianos é que sempre ousam mais. E até essas ousadias indicam equivalência, e não diferença, entre morte e desencarnação. Se não, vejamos. 

Em O Livro dos Espíritos. 

1 — nota ao n. 188: Une personne décédée: uma pessoa falecida. 

G. Ribeiro: um espírito que desencarnara. 

E. N. Bezerra: um espírito que havia desencarnado. 

J. H. Pires: uma pessoa falecida. 

2 — n. 257: pendant les premiers instants, l'Esprit: durante os primeiros instantes, o espírito. 

G. R.: durante os primeiros minutos depois da desencarnação, o espírito. 

E. N. B.: durante os primeiros instantes, o espírito. 

J. H. P.: nos primeiros instantes, o espírito. 

3 — n. 339: sortie du corps: saída do corpo. 

G. R. e E. N. B.: ao desencarnar. 

J. H. P.: desencarnação. 

4 — n. 399: l'état d'Esprit e l'état d'incarnation: o estado de espírito e o estado de encarnação. 

G. R. e E. N. B.: quando desencarnado e quando encarnado. 

J. H. P.: no estado de espírito e no estado de encarnado. 

5 — n. 402: à leur mort: na sua morte. 

G. R.: desencarnando; 

E. N. B.: ao desencarnarem. 

J. H. P.: ao morrerem. 

6 — n. 1014-a: Esprits errants, ou nouvellement dégagés: espíritos errantes, ou recentemente libertos. 

G. R. e E. N. B.: recém-desencarnados. 

J. H. P.: recentemente libertados. 

Em O Céu e o Inferno. 

7 — parte II, cap. II: Sr. Sanson, numa nota Kardec escreve: mais en raison de la mort récente de M. Sanson: mas em razão da morte recente do Sr. Sanson. 

M. J. Quintão: visto que o Sr. Sanson desencarnara recentemente. 

J. H. P.: mas em virtude da morte recente do Sr. Sanson. 

8 — parte II, cap. II: O Doutor Demeure, a certa altura escreve Kardec: lendemain de sa mort: no dia seguinte ao de sua morte. 

M. J. Q.: da sua desencarnação. 

J. H. P.: da sua morte. 

Etc. etc. 

Kardec chegou a fazer uso do part./adj. désincarné, do subst. désincarnation, mas nunca do verb. désincarner e suas formas, o que coube, antes, aos espíritos Viennois: désincarnent, Lamennais: désincarne, e Clélie Duplantier: désincarnant.[1] Eis os dois únicos empregos substantivos do mestre. 

Em O Céu e o Inferno. 

1 — Parte I, cap. III, n. 17. F.E.B., 2003, 51ª ed., p. 37, meu, o acréscimo da palavra espíritos entre colchetes; no original: mêmes Esprits: “Cada globo tem, de alguma sorte, sua população própria de espíritos encarnados e desencarnados, alimentada em sua maioria pela encarnação e desencarnação dos mesmos [espíritos]. Esta população é mais estável nos mundos inferiores, pelo apego deles à matéria, e mais flutuante nos superiores”. 

Na Revista Espírita. 

2 — Jan/1866. A Jovem Cataléptica da Suábia. Estudo Psicológico. F.E.B., 2007, 2ª ed., p. 41: “Tal é a alma durante a vida e depois da morte. Para ela há, portanto, dois estados: o de encarnação ou de constrangimento, e o de desencarnação ou de liberdade; em outras palavras: o da vida corporal e o da vida espiritual”. 

No primeiro contexto, desencarnação opõe-se a encarnação, justamente como morte a nascimento; no segundo, é o estado de liberdade, de vida espiritual. Registre-se que désincarnation surgiu primeiramente numa correspondência publicada na Revista Espírita de set/1863. No texto do missivista, lê-se: désincarnation ou mort corporelle: desencarnação ou morte corporal, sinonímia que não mereceu de Kardec nenhum reparo.[2] As duas ocorrências substantivas restantes pertencem aos espíritos Demeure e Clélie Duplantier; em ambas, permanece o paralelismo com a palavra morte. 

Em O Céu e o Inferno. 

1 — Parte II, cap. II. O Doutor Demeure. Trad.: J. Herculano Pires: “quanto mais cedo se der a sua desencarnação, mais cedo poderá se dar também a reencarnação que lhe permitirá acabar a sua obra”. 

Na Revista Espírita. 

2 — Mar/1869. As Árvores Mal-Assombradas da Ilha Maurício. F.E.B., 2007, 2ª ed., p. 122: “Em geral, sendo a população mauriciana inferior, do ponto de vista moral, a desencarnação não pode fazer do espaço senão um viveiro de espíritos muito pouco desmaterializados, ainda marcados por todos os seus hábitos terrenos, e que continuam, não obstante espíritos, a viver como se fossem homens”. 

Quando, por outra, os espíritos e Kardec trataram da intimidade do processo quase sempre gradual da separação entre alma e corpo, i. e., no suceder mesmo da morte e do pós-morte, não o fizeram com a palavra désincarnation, sim com o vocábulo dégagement: desprendimento.[3] E não sem motivos. O princípio espírita é que a vida orgânica pode animar um corpo sem alma, mas a alma não pode habitar um corpo sem vida orgânica.[4] Ora; após a morte, por mais demorado que o seja, o desprendimento não implica, segundo o mestre, a existência no corpo de nenhuma vitalidade, nem a possibilidade de retorno à vida, mas a simples persistência de uma afinidade entre o corpo e o espírito, afinidade que está sempre na razão da preponderância que, durante a vida, o espírito deu à matéria.[5] O estado de encarnação, assim, pressupõe vitalidade corporal; a ausência desta caracteriza, por sua vez, o de desencarnação. O cadáver não pode estar mais ou menos morto; na mesma proporção, a alma não estará mais ou menos désincarné: desencarnada, sim mais ou menos dégagé: desembaraçada, liberta, conceito bem distinto. Ao ocorrer a cessação da atividade do princípio vital, o corpo não mais retém a alma, embora esta, não raro, é que insista em identificar-se à matéria inerte. Com a morte, não há mais, no corpo, nenhuma vitalidade; todavia pode existir, entre alma e corpo, alguma ou muita afinidade, o que gera pontos de contato entre o cadáver e o perispírito. Entretidas que eram essas ligações fluídicas apenas pela atividade do princípio vital, passam a ser mantidas por uma força de aderência que, agora só devida ao espírito, o retém identificado ao corpo, e não mais encarnado nele. No francês: points de contact; force d'adhérence; liens fluidiques.[6] Esses laços fluídicos podem gerar uma espécie de repercussão moral que transmite ao espírito a sensação do que se passa no corpo, muito embora, mais que depressa, Kardec esclareça que repercussão não é o melhor termo, por dar a ideia de um efeito muito material àquilo que, antes, está mais para uma ilusão que o espírito toma como realidade. Ora; neste, as sensações não dependem mais de órgãos sensitivos; são gerais e não mais se devem a agentes exteriores.[7] Portanto, a desencarnação só se opera com a morte; o desprendimento, já durante a vida. A primeira depende da morte corporal; o segundo, da elevação moral. Durante a encarnação, é a vitalidade do corpo que prende a alma; depois da morte, é a afinidade da alma com a matéria que a identifica ao cadáver. Dessarte, morte equivale, sim, a desencarnação e antes difere, mais propriamente, de desprendimento. Morto o corpo, o espírito está efetivamente desencarnado, sem estar, porém, necessariamente desembaraçado, liberto. 



[1] Revista Espírita. Mai/1863, p. 222. Out/1863, p. 429. Abr/1869, p. 121. F.E.B. 

[2] Revista Espírita. Questões e Problemas. Sobre a expiação e a prova. F.E.B., 2007, 3ª ed., p. 366. 

[3] O Livro dos Espíritos, 154 a 162. O Céu e o Inferno, Parte II, cap. I: Le Passage. 

[4] O Livro dos Espíritos, 136-a. Trad.: J. Herculano Pires. 

[5] O Livro dos Espíritos, 155-a. 

[6] O Céu e o Inferno. Parte I, cap. I, ns. 4, 5, 10 e 11. 

[7] O Livro dos Espíritos, 257.